“Eu pensei que o amor seria mais doce, mais gentil. Descobri com meu primeiro amor que esses pensamentos eram apenas uma ilusão. Se apaixonar por alguém é algo muito mais violento, como ter sua pele arrancada.”
A adaptação do mangá given, de Natsuki Kizu, estreou na temporada de primavera de 2019 pela Crunchyroll, contando de maneira brilhante a história de Satou Mafuyu e como ele reencontra a vida e um novo amor na música após testemunhar o suicídio de seu namorado de infância.
O anime não apenas adaptou, como deu nova cor e profundidade à obra fantástica de Natsuki – a mídia animada permitindo a introdução da música como a essência da história que se manifesta nos relacionamentos entre os personagens.
Particularmente a música de Mafuyu, Fuyu no Hanashi (“Uma História de Inverno”) tocou os corações de todos, quando finalmente pudemos tê-la para ouvirmos e sentirmos todo o luto e sofrimento, e não apenas imaginá-la.
given possui uma profundidade não comumente esperada no gênero yaoi, ao qual faz parte de maneira nominal – o gênero é acusado de possuir histórias rasas e a continuação de estereótipos antigos. Natsuki Kizu é uma exceção à regra; seus mangás sempre são reconhecidos por possuírem enredos melancólicos e profundos, e personagens muito bem desenvolvidos.
Os 11 episódios do anime given retratam de forma extremamente tocante e emocionante o enredo principal que faz parte da obra: o relacionamento construído entre Mafuyu e o guitarrista Uenoyama Ritsuka, e como a música entrelaça suas vidas.
O filme, por outro lado, vai acompanhar o enredo sutil e incrivelmente impactante que ocorre simultaneamente à história principal: o triângulo amoroso entre o baterista Kaji Akihiko, o baixista Nakayama Haruki e o violinista Murata Ugetsu, que, apesar de ter uma personalidade difícil e bruscas (e, às vezes, violentas) mudanças de humor, é um gênio da música reconhecido internacionalmente – e o ex-namorado e primeiro amor da vida de Akihiko.
A adaptação em anime nos apresentou algumas perguntas extremamente sutis, percebidas, talvez, apenas por aqueles que já conheciam a obra no mangá. Uenoyama menciona, em um momento, que não sabe como o baterista vive em uma casa tão luxuosa, sendo uma pessoa de baixo poder aquisitivo. Isso traz um questionamento: por que nenhum dos membros da banda sabe que Akihiko mora com Ugetsu?
Por que Akihiko abertamente flerta com Haruki, apesar de uma cena nos mostrar ele voltando para casa e sendo recebido por Ugetsu como se eles estivessem em um relacionamento?
Quem, exatamente, é Murata Ugetsu? Quem é este gênio da música que fez com que o amor, para Akihiko, fosse como ter a pele arrancada?
Mafuyu e Uenoyama representam, apesar da história trágica e devastadora do passado de Mafuyu devido à perda de Yuuki, o lado mais leve de given – por serem jovens, por manterem alguma da inocência que a juventude pode permitir a eles. Por permitirem que a música os aproxime.
Ugetsu, Akihiko e Haruki, no entanto, são adultos, e, por conta das circunstâncias que os rodeiam e pelos erros que cometem, representam o lado mais maduro e, por conta disto, mais melancólico e intenso – algo típico das histórias de Natsuki, e trazido ao seu ápice brilhante no arco destes três personagens.
Existe simbolismo em cada detalhe de given. O luxuoso ‘meio-porão’ em que Akihiko e Ugetsu vivem é longe da luz do sol, fechado do mundo exterior – canonicamente, o motivo fornecido é que Ugetsu, sendo um violinista profissional, precisa viver em um lugar de acústica ideal; mas está implícita a ideia de que os dois estão fechando-se em um ciclo vicioso do qual nenhum consegue se libertar.
Haruki apaixona-se por Akihiko à primeira vista, e, desde então, afirmando internamente não saber muito bem o motivo, não corta mais o cabelo, mantendo-o sempre longo.
Paralelamente, Akihiko desiste de ser um violinista no primeiro momento em que conhece Ugetsu e é confrontado simultaneamente com sua genialidade insuperável, e a intensa dor – e paixão – que a música do outro o faz sentir.
Todos estes são alguns dos detalhes mostrados nos breves episódios da adaptação – e todos serão apresentados e desenvolvidos, de maneira dolorosamente clara, no filme, de lançamento anunciado para o dia 16 de maio deste ano.
O filme de given irá acompanhar três homens que devem lidar com as consequências drásticas dos atos que cometem; ao contrário de Mafuyu e Uenoyama, aos quais são permitidos o perdão e a fácil solução de seus problemas, o triângulo amoroso que será adaptado é complexo, complicado, e absolutamente inesquecível; no qual a música será não um momento de compreensão, mas um divisor, um ponto de conflito, tensão pura – e, por vezes, insuportável.
Como o próprio Akihiko fala, ele tocava como se o ato de estar vivo o machucasse.
Akihiko mora com o ex-namorado por não ter uma casa onde ficar e por nunca ter conseguido superar o relacionamento instável que possuem desde o ensino médio; Ugetsu provoca intensa inveja nele devido a seu talento inacreditável como violinista e causa conflitos constantes com seu humor difícil, e Haruki encontra-se preso nas idas e vindas dos dois, incapaz de ignorar seus sentimentos por Akihiko e de se manter distante dele.
O enredo progride, as situações escalam, e somos, pela primeira vez, confrontados com as consequências reais da vida adulta. Quando os personagens se veem diante dos resultados de suas escolhas, de seus erros, de suas emoções – quando veem e sentem a maneira como tudo isto afeta aqueles ao seu redor.
Esta é a genialidade sutil de given. Na abertura do anime, há um momento em que uma corda é esticada ao seu máximo e se parte ao meio. Em apenas uma frame, é resumido o contexto completo da obra – ou, pelo menos, parte dela.
O que acontece quando uma pessoa é testada a seu máximo? O que acontece quando tememos que o nascer do sol venha, sabendo que ele virá independente de nossa vontade?
O que acontece quando a corda quebra, e apenas a música deve restar?
1 Real a Hora - 2020 | um site do grupo Mediaz